A 3ª edição francesa da obra “O
Evangelho segundo o Espiritismo” pode
ser definida como a edição máster, ou matriz, de todas as versões que a
precedem, por ter sido revista, corrigida e modificada pelo insigne Mestre
Lionês, o qual estruturou essa magnífica obra em cinco partes:
i. Os atos comuns da vida
de Cristo;
ii. Os milagres;
iii. As predições;
iv. As palavras que foram
tomadas pela Igreja para fundamentos de seus dogmas; e
v. O ensino moral.
Além dessa magistral divisão, chama-nos
a atenção, sobremaneira, a construção didática da obra, que tem, a exemplo da
construção de grande edifício, seus pilares de sustentação.
De fato, no Evangelho, quatro
colunas mestras sustentam as diversas pavimentações temáticas da obra. Essas
colunas podem ser vistas como os quatro primeiros capítulos que fulcram o
edifício doutrinário, quais sejam:
i. Não vim destruir a lei;
ii. Meu reino não é deste
mundo;
iii. Há muitas moradas na
casa de meu Pai; e
iv. Ninguém
pode ver o Reino de Deus se não nascer de novo.
Não pode nos causar qualquer
receio afirmar que foi de maneira propositada que Kardec colocou o exame da Lei
logo no capítulo primeiro, apresentando, aí, as Três Revelações; a aliança entre
Ciência e Religião; e, por fim, as instruções dos Espíritos sobre a Nova Era. Dessa
forma, foi construído o primeiro pilar do Evangelho segundo o Espiritismo.
Também jamais por acaso, esse
capítulo primeiro é iniciado com as anotações do Evangelista Mateus: “Não
penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas; não os vim destruir,
mas cumpri-los; porquanto em verdade vos digo que o céu e a Terra não passarão,
sem que tudo o que se acha na lei esteja perfeitamente cumprido...” (1).
Quando assim afirma, a que Lei
Jesus refere-se?
Essa pergunta é importante, não
se tratando de simples predicação religiosa, mas, ao contrário, ela carrega, em
si, objetivos e definições: Jesus faz essa afirmação categórica ao mesmo tempo em
que propõe uma Boa Nova que questiona paradigmas sociais e políticos e apresenta
também uma reflexão sobre o extremado formalismo religioso.
Kardec, no item dois desse mesmo
capítulo primeiro, esclarece, sobre a Lei a que se refere Jesus:
Na
lei mosaica, há duas partes distintas: a lei de Deus, promulgada no monte
Sinai, e a lei civil ou disciplinar, decretada por Moisés. Uma é invariável; a
outra, apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se modifica com o tempo. (2).
Notadamente
Jesus refere-se à primeira parte da Lei, que é invariável, e que mesmo Ele não possuiria
o condão de modificar, ao contrário: o Mestre é enfático ao afirmar “que o céu
e a Terra não passarão, sem que tudo que se acha na lei esteja perfeitamente cumprido.”
Por modificar o que teria de ser mudado nos valores
humanos, a
vinda de Jesus à Terra representa a Segunda Revelação.
A Boa Nova é verdadeira revolução nas relações
sociais e interpessoais: a ideia do Deus parcial e vingativo apregoado na
Primeira Revelação, bem como a exclusão social contida nos costumes, precisavam
ser modificadas pelo exercício da ética do amor que estrutura a mensagem do
Cristo.
Um
aspecto pulsante daquele contexto histórico, encontrado pelo Divino Amigo, foi
a realidade da exclusão social decorrente das enfermidades graves.
Daquele
cenário, salta-nos aos olhos o drama da mulher hemorroíssa, que sofria do mal há
cerca de dez anos: ela era, em decorrência da enfermidade, considerada impura e
vivia isolada, com proibição de que permitisse que a tocassem, porque, na visão
ignorante da época, tinha-se receio de que o mal de que ela sofria fosse
contagioso.
Ressalta-se
que, naquele tempo, pessoas com enfermidades graves ou que haviam cometido
crimes sérios eram excluídas do “livro dos vivos” pelo Sinédrio, ou seja: como
que “desapareciam” mesmo, do mundo dos vivos.
Tanto
assim que, quando Jesus curou o leproso, solicitou que ele fosse primeiro ao sacerdote
e cumprisse os preceitos conforme previa a lei mosaica, a fim de que pudesse
ser reincluído no livro dos vivos...
Ora,
nesse contexto, a cura representava mesmo um processo de inclusão social, e
Jesus, o Incomparável Amigo, assim o faz todo o tempo: reinclui todas as
pessoas, não importando se fossem males físicos ou morais que elas carregassem
consigo até então.
E
isso porque Jesus consolidara tudo o que constava da Lei em apenas dois
mandamentos, que passaram a ser a lei áurea daí em diante, regra de conduta
pessoal, social, moral a toda a humanidade.
O
resumo divinal proveio do Mestre em resposta a pergunta capciosa que mero
doutor da Lei havia lhe feito (3):
“(...) Mestre, qual
o mandamento maior da lei?”
Jesus ensina:
“Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito; este o maior e
o primeiro mandamento. E aqui tendes o segundo: Amarás o teu próximo, como a ti
mesmo. Toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos.”
Simples?!...
…Aparentemente
sim.
Afinal,
são apenas dois mandamentos, com três deveres neles explícitos: amar a Deus
sobre todas as coisas; amar a nós mesmos; amar ao próximo.
E
é necessariamente nesta ordem que ensina Jesus: amar a Deus; a nós mesmos; e ao
próximo, porquanto, embora o próximo esteja em evidência – “amarás ao próximo
como a ti...” - a referência somos nós.
Esses
deveres, compondo uma tríade, interagem entre si, e qualquer dever que se deixe
de cumprir impactará, direta ou indiretamente, no cumprimento dos outros dois
deveres, o que faz com que, na prática, a aplicação do mandamento, devido ao
nosso atraso evolutivo, não se torne tão simples assim...
Para
sabermos se estamos ou não cumprindo com o Mandamento Maior é que Santo
Agostinho, na questão 919, de O Livro dos Espíritos (4), apresenta-nos sua
fórmula, experimentada por ele, quando ainda no corpo: a solução é mesmo a
autorreflexão diária...
É
necessário enfatizar: todo o ensinamento de Jesus está sintetizado nestes dois
mandamentos: amar a Deus e ao nosso próximo, como nos amamos.
Quem
assim afirma é o próprio Cristo.
Não
é senão Ele quem diz que “toda a lei...” – notemos: toda a Lei! - “toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos.”
Isso
implica dizer que tudo o que foi ensinado abriga as relações entre Deus, o
próximo e nós, sob qualquer contexto.
Aí
reside o real cumprimento da Lei!
É
o cumprimento verdadeiro da Lei que a vida aguarda de nós: que amemos a Deus,
enxergando-O em nós mesmos e no próximo, nosso igual, nosso irmão.
Cabe
então perguntarmos, a nós mesmos, como estamos enxergando a vivência da Lei nos
dias atuais.
Enxergamo-la,
conforme ensinou Jesus?
Quantos
dos artigos dela, da Lei, contidos nos mandamentos do Sinai, ainda infringimos,
diariamente?
Quem
é que ainda estamos excluindo, egoisticamente, do nosso secreto e pessoal
“livro dos vivos” ?!
No
episódio do julgamento da mulher adúltera, Jesus desafia-nos: “quem não tiver
pecado que atire a primeira pedra...” (5).
Nos
dias atuais, a arrogância, muitas vezes disfarçada sob o nome de conhecimento
intelectual, e o atraso moral, que vem com o nome de hedonismo, conclamando
todos à vivência imediata do deleite de todos os sentidos e prazeres, em
verdade têm logrado afastar o homem, corrompido, da vivência da Lei de Deus.
Publicado na Revista Internacional de Espiritismo - RIE - março/2016
Referências:
11)
KARDEC,
Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo. 131ª. ed. Brasília, FEB, 2013 p. 41.
22)
Idem.
ibidem. p, 41.
33) Lucas, 10:27
44)
KARDEC,
Allan, O Livro dos Espíritos. 83ª. ed. Rio de Janeiro, FEB, 2002 p. 423.
55) João, 8: 1-11
Warwick, adorei o Blog, me fez refletir muito, me tocou realmente. Acompanharei suas postagens, pois os temas e suas palavras são ótimos. Parabéns! Suli
ResponderExcluirOlá Suli, muito obrigado pelas palavras!
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