segunda-feira, 21 de março de 2016

JESUS, A LEI E NÓS

Por Warwick Mota


A 3ª edição francesa da obra “O Evangelho segundo o Espiritismo” pode ser definida como a edição máster, ou matriz, de todas as versões que a precedem, por ter sido revista, corrigida e modificada pelo insigne Mestre Lionês, o qual estruturou essa magnífica obra em cinco partes:

                                                    i.     Os atos comuns da vida de Cristo;
                                                   ii.     Os milagres;
                                                 iii.     As predições;
                                                 iv.     As palavras que foram tomadas pela Igreja para fundamentos de seus dogmas; e
                                                  v.     O ensino moral.

Além dessa magistral divisão, chama-nos a atenção, sobremaneira, a construção didática da obra, que tem, a exemplo da construção de grande edifício, seus pilares de sustentação.
De fato, no Evangelho, quatro colunas mestras sustentam as diversas pavimentações temáticas da obra. Essas colunas podem ser vistas como os quatro primeiros capítulos que fulcram o edifício doutrinário, quais sejam:

                                                    i.     Não vim destruir a lei;
                                                   ii.     Meu reino não é deste mundo;
                                                 iii.     Há muitas moradas na casa de meu Pai; e
                                                 iv.     Ninguém pode ver o Reino de Deus se não nascer de novo.

Não pode nos causar qualquer receio afirmar que foi de maneira propositada que Kardec colocou o exame da Lei logo no capítulo primeiro, apresentando, aí, as Três Revelações; a aliança entre Ciência e Religião; e, por fim, as instruções dos Espíritos sobre a Nova Era. Dessa forma, foi construído o primeiro pilar do Evangelho segundo o Espiritismo.

Também jamais por acaso, esse capítulo primeiro é iniciado com as anotações do Evangelista Mateus: “Não penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas; não os vim destruir, mas cumpri-los; porquanto em verdade vos digo que o céu e a Terra não passarão, sem que tudo o que se acha na lei esteja perfeitamente cumprido...” (1).

Quando assim afirma, a que Lei Jesus refere-se?

Essa pergunta é importante, não se tratando de simples predicação religiosa, mas, ao contrário, ela carrega, em si, objetivos e definições: Jesus faz essa afirmação categórica ao mesmo tempo em que propõe uma Boa Nova que questiona paradigmas sociais e políticos e apresenta também uma reflexão sobre o extremado formalismo religioso.

Kardec, no item dois desse mesmo capítulo primeiro, esclarece, sobre a Lei a que se refere Jesus:

Na lei mosaica, há duas partes distintas: a lei de Deus, promulgada no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar, decretada por Moisés. Uma é invariável; a outra, apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se modifica com o tempo. (2).

Notadamente Jesus refere-se à primeira parte da Lei, que é invariável, e que mesmo Ele não possuiria o condão de modificar, ao contrário: o Mestre é enfático ao afirmar “que o céu e a Terra não passarão, sem que tudo que se acha na lei esteja perfeitamente cumprido.”

Por modificar o que teria de ser mudado nos valores humanos, a vinda de Jesus à Terra representa a Segunda Revelação.

A Boa Nova é verdadeira revolução nas relações sociais e interpessoais: a ideia do Deus parcial e vingativo apregoado na Primeira Revelação, bem como a exclusão social contida nos costumes, precisavam ser modificadas pelo exercício da ética do amor que estrutura a mensagem do Cristo.      

Um aspecto pulsante daquele contexto histórico, encontrado pelo Divino Amigo, foi a realidade da exclusão social decorrente das enfermidades graves.

Daquele cenário, salta-nos aos olhos o drama da mulher hemorroíssa, que sofria do mal há cerca de dez anos: ela era, em decorrência da enfermidade, considerada impura e vivia isolada, com proibição de que permitisse que a tocassem, porque, na visão ignorante da época, tinha-se receio de que o mal de que ela sofria fosse contagioso.

Ressalta-se que, naquele tempo, pessoas com enfermidades graves ou que haviam cometido crimes sérios eram excluídas do “livro dos vivos” pelo Sinédrio, ou seja: como que “desapareciam” mesmo, do mundo dos vivos.

Tanto assim que, quando Jesus curou o leproso, solicitou que ele fosse primeiro ao sacerdote e cumprisse os preceitos conforme previa a lei mosaica, a fim de que pudesse ser reincluído no livro dos vivos...

Ora, nesse contexto, a cura representava mesmo um processo de inclusão social, e Jesus, o Incomparável Amigo, assim o faz todo o tempo: reinclui todas as pessoas, não importando se fossem males físicos ou morais que elas carregassem consigo até então.

E isso porque Jesus consolidara tudo o que constava da Lei em apenas dois mandamentos, que passaram a ser a lei áurea daí em diante, regra de conduta pessoal, social, moral a toda a humanidade.

O resumo divinal proveio do Mestre em resposta a pergunta capciosa que mero doutor da Lei havia lhe feito (3):

“(...) Mestre, qual o mandamento maior da lei?”

Jesus ensina:

 “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito; este o maior e o primeiro mandamento. E aqui tendes o segundo: Amarás o teu próximo, como a ti mesmo. Toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos.”
                   
Simples?!...

…Aparentemente sim.

Afinal, são apenas dois mandamentos, com três deveres neles explícitos: amar a Deus sobre todas as coisas; amar a nós mesmos; amar ao próximo.

E é necessariamente nesta ordem que ensina Jesus: amar a Deus; a nós mesmos; e ao próximo, porquanto, embora o próximo esteja em evidência – “amarás ao próximo como a ti...” - a referência somos nós.

Esses deveres, compondo uma tríade, interagem entre si, e qualquer dever que se deixe de cumprir impactará, direta ou indiretamente, no cumprimento dos outros dois deveres, o que faz com que, na prática, a aplicação do mandamento, devido ao nosso atraso evolutivo, não se torne tão simples assim...

Para sabermos se estamos ou não cumprindo com o Mandamento Maior é que Santo Agostinho, na questão 919, de O Livro dos Espíritos (4), apresenta-nos sua fórmula, experimentada por ele, quando ainda no corpo: a solução é mesmo a autorreflexão diária...

É necessário enfatizar: todo o ensinamento de Jesus está sintetizado nestes dois mandamentos: amar a Deus e ao nosso próximo, como nos amamos.

Quem assim afirma é o próprio Cristo.

Não é senão Ele quem diz que “toda a lei...” – notemos: toda a Lei! - “toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos.”

Isso implica dizer que tudo o que foi ensinado abriga as relações entre Deus, o próximo e nós, sob qualquer contexto.

Aí reside o real cumprimento da Lei!

É o cumprimento verdadeiro da Lei que a vida aguarda de nós: que amemos a Deus, enxergando-O em nós mesmos e no próximo, nosso igual, nosso irmão.

Cabe então perguntarmos, a nós mesmos, como estamos enxergando a vivência da Lei nos dias atuais.

Enxergamo-la, conforme ensinou Jesus?

Quantos dos artigos dela, da Lei, contidos nos mandamentos do Sinai, ainda infringimos, diariamente?

Quem é que ainda estamos excluindo, egoisticamente, do nosso secreto e pessoal “livro dos vivos” ?!

No episódio do julgamento da mulher adúltera, Jesus desafia-nos: “quem não tiver pecado que atire a primeira pedra...” (5).
         
Nos dias atuais, a arrogância, muitas vezes disfarçada sob o nome de conhecimento intelectual, e o atraso moral, que vem com o nome de hedonismo, conclamando todos à vivência imediata do deleite de todos os sentidos e prazeres, em verdade têm logrado afastar o homem, corrompido, da vivência da Lei de Deus.

No entanto, cedo ou tarde, essa mesma Lei, por mecanismos naturais e específicos, haverá de conduzir-nos ao seu inexorável cumprimento, fazendo-nos recordar da nossa minguada ascensão evolutiva e, portanto, da imediata necessidade de avançarmos, por meio do simples, mas, muitas vezes, amargo despertar da nossa consciência, que, invariavelmente, é sempre acordada ao toque pedagógico da dor



Publicado na Revista Internacional de Espiritismo - RIE - março/2016

Referências:
11)      KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo. 131ª. ed. Brasília, FEB, 2013 p. 41.
22)      Idem. ibidem. p, 41.
33)      Lucas, 10:27
44)      KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos. 83ª. ed. Rio de Janeiro, FEB, 2002 p. 423.

55)      João, 8: 1-11

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